A discussão sobre a maioridade penal é um tema recorrente, provocando
debates acalorados em vários setores da sociedade. Recentemente, o
assunto voltou a ser destaque no Brasil, em virtude da rediscussão da
Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n.º 171/93 que reduz de dezoito
para 16 anos a idade da imputabilidade penal. Ou seja, pela proposta,
jovens de 16 a 17 anos de idade poderão responder e ser punidos
criminalmente da mesma forma que adultos, de acordo com o Código Penal, e
não mais seguindo as normas do Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA).
Afinal, o que as Escrituras têm a dizer sobre um tema tão complexo como
este? Qual deve ser a postura do cristão em relação à maioridade penal?
De início, precisamos ter em mente que, embora a Bíblia não sirva como livro de aplicação jurídica direta, seja na esfera civil ou
penal, ela fornece diretrizes valiosas para a vida em sociedade, cujos
princípios e postulados éticos podem ser aplicados em vários segmentos
sociais, inclusive no plano legal. É válido lembrar que a tradição
judaico-cristã, a par dos ensinamentos das Escrituras, contribuiu
historicamente para a formatação dos principais direitos humanos como
liberdade, igualdade e dignidade da pessoa, com fundamento no
pressuposto bíblico da imago dei – criação do homem à imagem e semelhança de Deus (Gn 1.27).
Assim, ao recorremos as Escrituras para refletir sobre a questão da
maioridade penal e suas implicações sociais, não estamos simplesmente
buscando aplicar regras jurídicas do antigo Israel ou da época do Novo
Testamento ao tempo presente. Cada período teve a sua realidade
sociocultural específica, que exigiram obviamente medidas jurídicas
aplicáveis ao seu próprio tempo. Por outro lado, os princípios imutáveis
extraídos das Escrituras Sagradas embasam uma perspectiva abrangente
sobre toda a realidade, englobando temas do direito penal e da segurança
pública. A cosmovisão cristã é capaz de contribuir com esse debate tão
importante e caro à vida em comunidade, pois fornece premissas básicas
para a boa convivência social, por meio da confrontação do erro e
punição do ofensor.
O cristianismo enfatiza que o comportamento moral individual possui
consequências públicas, razão pela qual a ideia de justiça social e dos
direitos civis devem considerar a responsabilidade moral de cada cidadão
como elemento indispensável para a pacificação social. Afinal, não
existe moralidade e segurança pública se desprezarmos a responsabilidade
ética de cada indivíduo.
Com relação à idade partir da qual a pessoa passa a ser
responsabilizada criminalmente como adulta, sabe-se que o critério
adotado no Brasil é o biológico. Conforme o art. 228 da Constituição
Federal os menores de dezoito anos de idade são penalmente inimputáveis,
sujeitando-se às normas especiais (ECA). Por esse critério, presume-se
que os menores de 18 anos não são plenamente desenvolvidos, não estando
aptos, portanto, a serem punidos como se adultos fossem.
Ocorre que diante de uma sociedade da informação, com o conhecimento
cada vez mais acessível a todos, inclusive por parte de jovens e
adolescentes, a imputação penal somente aos maiores de dezoito anos
parece ser algo fora da realidade atual. Além disso, crimes violentos e
cruéis praticados por menores, como o caso de quatro adolescentes que
estupraram coletivamente uma jovem na pequena cidade de Castelo no
Piauí, parecem evidenciar a necessidade de mudança no atual sistema de
responsabilização criminal brasileiro. Acrescente-se a isso outros dois
fatores tenebrosos: a sensação de impunidade e a utilização de
adolescentes como instrumentos de crime por organizações criminosas.
A perspectiva cristã assume que os magistrados não são terror para as
boas obras, mas para as más (Rm 13.3). Por isso, as Escrituras também
nos admoestam a obedecer as autoridades (Rm 13.1,2), respeitando as leis
e o governo civil, pois toda autoridade provém do altíssimo e foram
ordenadas por Ele.
Com relação à segurança e ao combate à criminalidade, as Escrituras nos
fornecem dois princípios basilares que podem direcionar as políticas
públicas: prevenção e punição.
A ação preventiva é a primeira medida de combate à criminalidade.
Escrevendo a partir de uma perspectiva cristã, Charles Colson e Nancy
Pearcey[1] afirmam
que “a solução não é simplesmente uma questão de construir mais prisões
e encarcerar mais criminosos”. Essa afirmação não está descartando as
medidas de repressão contra o crime, afinal, a própria existência de
leis claras que estabelecem os critérios de punição às infrações, também
servem como mecanismos de prevenção. O que os autores estão dizendo é
que “o melhor modo de reduzir o crime não é reagir depois do fato com
castigos e reabilitação, mas desencorajá-los antes que aconteça, criando
uma vida em comunidade civilizada e ordenada”[2].
Eles citam o exemplo da teoria da janela quebrada, pela qual se uma
janela está quebrada e não é consertada depressa, os ofensores
potenciais verão isto como um convite para quebrar mais janelas. Quando
as janelas nunca são consertadas, dizem os autores, e mais estão sendo
quebradas, um senso de desordem é criado, facilitando, quando não
incita, mais ação criminal.
Segundo Charles Colson e Nancy Pearcey a teoria da janela quebrada encontra respaldo no Shalom israelita, referindo-se
à paz no sentido positivo, como o resultado de uma sociedade
corretamente organizada, com base bíblica na doutrina da Criação. Os
autores ainda afirmam que o estabelecimento da ordem funciona tão bem
como um preventivo contra o crime, porque expressa uma ordem subjacente e
mostra que a comunidade está disposta a impor essa ordem[3].
Aqueles que são contrários à alteração da maioridade penal geralmente
afirmam que o Estado precisa agir de forma preventiva, por meio da
educação e da aplicação efetiva do ECA, sem a necessidade da mudança do
atual regime. Obviamente que a educação é uma importante ação
preventiva, porém, sozinha, ela não pode aplacar o problema da
delinquência. A prova disso são os inúmeros jovens de classe social
abastada que apesar de terem acesso às melhores instituições
educacionais, ainda assim cometem crimes bárbaros. Aqui encontra-se
implícita a doutrina bíblica da Queda, que explica a tendência humana de
fazer o mal (Rm 7.15).
Ante a natureza humana pecaminosa, tanto a educação quanto as demais
ações preventivas devem vir acompanhadas de medidas punitivas contra as
ações delituosas, exatamente para desencorajar a prática do crime. Por
essa razão a punição de crimes menores é também uma forma de prevenção.
A pergunta é: será que a atual legislação brasileira serve
preventivamente como mecanismo de desencorajamento da prática de crimes,
nesse caso, entre os jovens e adolescentes?
Obviamente que a resposta é negativa. Muito ao contrário, ao
conjugarmos uma legislação leniente e uma administração judiciária
morosa e ineficiente, temos um quadro sombrio que, ao invés de
desencorajar a criminalidade juvenil, acaba por incentivá-la. Nesse
aspecto, cabe inclusive desfazer o mito de que os jovens menores de
dezoito anos são responsáveis por menos de 1% dos assassinatos no
Brasil. Conforme matéria da revista Veja de 17/06/2015 levantamento
feito pela Folha de S. Paulo apurou que em sete de nove estados
brasileiros a porcentagem de assassinatos cometidos por menores de idade
é de pelo menos 10%. Em outros países, segundo a reportagem, esse
número é bem maior que 1%; nos Estados Unidos, a taxa é de 7%, e no
Reino Unido, 18%.
No panorama bíblico, reduzir a chamada maioridade penal para dezesseis
anos obviamente não resolverá o problema da criminalidade
infanto-juvenil, mas aparentemente servirá como mais uma ação de combate
ao crime dentro dessa faixa etária. A ordem e a segurança pública não
se resolvem com uma única lei, mas dependem de uma série de fatores e
políticas que contribuem para a redução dos índices criminais. A efeito,
a redução da maioridade penal parece ser somente mais um desses fatores
que, embora não resolvam o problema na sua totalidade, apresenta-se
como uma medida inevitável dentro da atual realidade social.
Na perspectiva cristã a punição, isto é, a retribuição pelo erro
cometido, tanto no nível espiritual quanto social, é importante porque é
uma medida de justiça, para dar a cada um aquilo que lhe pertence (Jó
11.2; Is 50.8). Na tradição judaica, o berço do cristianismo, por
exemplo – conforme registra o Dicionário Wycliffe[4] –
aos 13 anos o israelita deixava de ser instruído como uma criança, pois o
menino tornava-se legalmente maior e entrava no grupo dos homens, e
assumia as obrigações de recitar a Torá, jejuar e fazer as
peregrinações. A partir dessa idade, ele passa a ser responsável por
seus próprios atos.
Hoje, dentro da atual realidade brasileira, será que jovens de 16 e 17
anos de idade não estão aptos a responderem por seus próprios atos?
Responder de forma negativa a essa indagação parece contrariar a
realidade dos fatos.
Artigo publicado no Mensageiro da Paz, agosto de 2015.
Referências:
[1] COLSON, Charles; PEARCEY, Nancy. E Agora, Como Viveremos?. Rio de Janeiro: CPAD, 2000, p. 428.
[2] Obra citada, p. 430.
[3] Obra citada, p. 433.
[4] PFEIFFER, Charles F.; REA, John; VOS, Howard F. (Eds). Dicionário Bíblico Wyclife. 1.ed. RJ: CPAD, 2009, p. 490.
Valmir Nascimento é ministro do evangelho, jurista,
teólogo e mestrando em teologia. Possui pós-graduação em Direito e
antropologia da religião. Professor universitário de Direito religioso,
Ética e Teologia. Editor da Revista acadêmica Enfoque Teológico (FEICS).
Membro e Diretor de Assuntos Acadêmicos da Associação Nacional de
Juristas Evangélicos (Anajure). Analista Jurídico da Justiça Eleitoral.
Escritor e palestrante. Comentarista de Lições Bíblicas de Jovens da
CPAD (Jesus e o seu Tempo). Evangelista da Assembleia de Deus em
Cuiabá/MT.
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